“Tem mulher que merece apanhar”: O caso que escancara a violência que a lei ainda não conseguiu curar

Declaração de uma vereadora do Amazonas e sua posterior retratação acendem o debate sobre a cultura machista enraizada e os limites da legislação no combate à violência de gênero.

A declaração da vereadora Elizabeth Maciel (Betinha), do Republicanos do Amazonas, durante uma sessão da Câmara Municipal de Borba no final de setembro de 2025, chocou o país. Ao discursar, ela afirmou: “Eu sou a favor da violência contra a mulher. Quando um homem bate em uma mulher, eu aprovo. Tem mulher que merece apanhar, tem sim” . A justificativa? Alegou ter visto casos em que mulheres se machucaram sozinhas para acusar homens .

A repercussão foi imediata e negativa. A própria Câmara de Borba emitiu nota repudiando veementemente as falas, classificando-as como “absolutamente inaceitáveis” . A Polícia Civil abriu investigação para apurar o caso, e o Ministério Público do Estado do Amazonas (MPAM) anunciou que tomará as providências cabíveis . Diante da pressão, Betinha recuou. Em um vídeo publicado nas redes sociais, pediu desculpas, disse ter sido “extremamente infeliz” e afirmou que sua intenção não era justificar a violência .

Este caso, no entanto, vai além de uma simples fala infeliz de uma parlamentar. Ele serve como um sintoma grave de um problema social mais profundo: a naturalização da violência contra a mulher e a persistência de uma cultura machista que, por vezes, é reproduzida até mesmo por mulheres.

O abismo entre a lei e a mentalidade social

O Brasil possui uma das legislações mais avançadas do mundo no enfrentamento à violência de gênero, a Lei Maria da Penha. Em 2025, esse arcabouço foi ainda mais fortalecido com novas leis sancionadas, como a que aumenta a pena para crimes de violência psicológica cometidos com inteligência artificial e a que institui o uso da tornozeleira eletrônica para agressores em nível nacional . O Congresso também analisa uma série de outros projetos robustos, como:

· Controle de armas: Propostas para suspender posse e porte de armas para agressores com medida protetiva e instituir desarmamento voluntário em lares violentos .
· Combate ao feminicídio: Um projeto para impedir que a “atenuante de idade” (ser menor de 21 anos) seja usada para reduzir a pena do crime de feminicídio .
· Proteção processual: Garantia de que a vítima não será obrigada a participar de audiências de mediação presenciais com o agressor, evitando sua revitimização .

Apesar desses avanços legais, os dados mostram um cenário preocupante. Uma pesquisa do DataSenado revelou que, entre 2005 e 2023, o percentual de mulheres que relatam já ter sofrido violência saltou de 17% para 30% . O estado do Amazonas, palco do caso Betinha, é o terceiro no ranking nacional de violência contra a mulher, com 604 episódios registrados em 2024 . Esse contraste entre lei e realidade indica que a norma sozinha não é suficiente para mudar uma mentalidade culturalmente enraizada.

Por que mulheres reproduzem o discurso da violência?

A pergunta que surge é: o que leva uma mulher, que também é vítima em potencial dessa violência, a defender uma ideia tão cruel? A análise do caso e do contexto social aponta para algumas explicações possíveis:

· Internalização do machismo: Em uma cultura que historicamente subjuga a mulher, os valores machistas podem ser introjetados. Isso significa que algumas mulheres naturalizam e reproduzem discursos que as prejudicam, enxergando a violência como um “corretivo” em certas situações.
· Vitimização e descredibilidade: A fala de Betinha ecoa um estereótipo perigoso e infundado: o de que mulheres “inventam” agressões. Essa narrativa, ao semear a dúvida, fragiliza a credibilidade das vítimas reais e as desencoraja a denunciar.
· Justificativa de uma realidade brutal: Em um ambiente com altos índices de violência, como o Amazonas, a defesa de que “tem mulher que merece” pode ser um mecanismo de coping (enfrentamento) para racionalizar e tentar dar sentido a uma realidade caótica e aterrorizante.

O caminho é a educação e a aplicação integrada da lei

Especialistas e as próprias novas políticas públicas apontam que o enfrentamento eficaz exige uma abordagem dupla. Por um lado, é crucial continuar aperfeiçoando e aplicando a lei. Ferramentas como o Formulário Nacional de Avaliação de Risco, usado no primeiro atendimento a vítimas, ajudam a quantificar objetivamente o perigo e a adotar as medidas protetivas mais adequadas . Projetos que permitem à vítima acessar o histórico criminal do agressor também empoderam a mulher com informações cruciais para sua segurança .

Por outro lado, e de forma talvez mais fundamental, é imperative investir massivamente na transformação cultural. Isso se faz com educação para a igualdade de gênero desde a infância, campanhas de conscientização que desconstruam estereótipos e com o fomento a mais mulheres em espaços de poder e decisão, onde possam representar de fato os interesses de todas.

Conclusão

O caso da vereadora Betinha é mais do que um escândalo passageiro; é um espelho que reflete uma chaga social persistente. Ele demonstra que, por mais robusta que seja a legislação, ela esbarra em um muro de crenças e valores arraigados. A luta contra a violência à mulher é, antes de tudo, uma batalha cultural. Enquanto frases como “tem mulher que merece apanhar” forem proferidas e, mesmo que depois retratadas, encontrarem eco em parte da sociedade, fica claro que a cura para essa violência exigirá não apenas a letra da lei, mas uma profunda e demorada revolução de mentalidades.

por Evair Lopes

Veja as declarações da vereadora Elizabeth Maciel (Betinha)

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