Proposta que torna quase impossível processar políticos por decisões no cargo, passa no Congresso vestindo o manto da “estabilidade”, enquanto ergue muralhas contra a Justiça.
Em um espetáculo de rara sincronia, a elite política brasileira parece ter finalmente encontrado um assunto capaz de unir esquerda e direita, em um consenso tocante: a urgente necessidade de se proteger… de você.
Trata-se da PEC 3/2021, batizada com o eufemismo sonolento de “PEC da Blindagem” de relatoria do deputado Cláudio Cajado. O nome, é claro, é um trabalho de relações públicas. Ninguém venderia bem a “PEC do Fique Tranquilo, Você Não Pode Me Processar”. A proposta, que avançou no Congresso (placar 344 a 133), visa modificar a Constituição para elevar a níveis estratosféricos o já considerável escudo de que deputados, senadores gozam perante a Justiça.
A justificativa oficial é um clássico: garantir “estabilidade” e “autonomia” aos mandatos, evitando supostas “perseguições judiciais” que perturbariam o sagrado trabalho de legislar. É uma narrativa conveniente, que transforma o político em vítima potencial de um sistema judicial sanguinário – uma inversão criativa da realidade que causaria inveja a qualquer roteirista de ficção.
O cerne da “blindagem” é simples e genial em sua audácia. A PEC exige que, para iniciar qualquer ação penal contra um agente político por atos relacionados ao mandato, haja uma autorização prévia da Casa legislativa correspondente. Ou seja, para processar um deputado, a Câmara dos Deputados precisa dar sua benção. Para processar um senador, o aval deve vir do Senado. É o equivalente a pedir para um suspeito de assalto assinar a autorização para a polícia invadir sua própria casa: tecnicamente possível, mas praticamente um convite ao arquivamento.
Os críticos – aqueles ingênuos que ainda acreditam em conceitos arcaicos como “isonomia perante a lei” – veem a medida como a institucionalização da impunidade. Imagine a cena: um parlamentar é acusado de desviar verba de uma emenda parlamentar. O processo só segue se seus colegas de plenário, muitos dos quais podem estar envolvidos em esquemas similares ou depender de aliados do acusado, votarem a favor de processá-lo. Que cenário hipotético terrível, não? Quem ousaria colocar a mão no fogo por um colega?
O sarcasmo aqui é inevitável, mas necessário. Enquanto o cidadão comum responde a qualquer intimação judicial de forma ágil e obrigatória, a classe política se mobiliza com fervor para criar um foro privilegiado ainda mais privilegiado em que a lei age apenas com convite. É a mais pura expressão do “nós” contra “eles”. E o “eles”, nessa equação, somos nós: os contribuintes, os eleitores, os que pagamos a conta e esperamos, talvez romanticamente, que a prestação de contas seja um princípio, e não um incômodo.
A defesa da proposta é um monumento à retórica vazia. Fala-se em “fim da lawfare”, um termo importado e mal digerido usado para demonizar operações judiciais que, pasme, incomodam o poder. É curioso como o grito da “perseguição política” só surge quando as algemas ficam próximas dos punhos de quem está no planalto ou no congresso. Para o cidadão comum, o nome é outro: processo.
A verdadeira “blindagem” que o país precisa é a dos serviços públicos, da saúde, da educação e da segurança do cidadão, constantemente metralhados pela ineficiência e pela corrupção. Em vez de se blindarem contra a lei, talvez nossos representantes pudessem trabalhar para blindar a população contra a fome, o desemprego e a violência.
Mas isso, claro, daria muito mais trabalho e ofereceria muito menos benefício pessoal. E no grande teatro da política brasileira, o ensaio geral da autopreservação parece ser a única peça que todos sabem decorada. O palco está armado, e o elenco, coeso. A plateia, como de costume, é obrigada a assistir e a pagar ingresso.
por Evair Lopes